Wednesday, March 07, 2018

NEUROPSICO-LÓGICA DO PROCESSAMENTO FONOLÓGICO NA DISLEXIA

A sabedoria convencional considera que a dislexia do desenvolvimento consiste de um comprometimento do processamento fonológico. Mas não se sabe ao certo o que seja processamento fonológico.

Déficits em três tipos de processos envolvendo manipulações fonológicas têm sido identificados na dislexia:

a) Consciência fonêmica (CF). Habilidade de segmentar intencionalmente o fluxo de fala em seus fonemas constituintes e manipulá-los com o intuito de estabelecer as correlações grafema-fonema requeridas pela aprendizagem da leitura. A consciência fonêmica pode ser testada através de tarefas como a supressão de fonemas. Após ouvir e repetir a palavra "caRta" o probando é solicitado a retirar o fonema /R/ (ou /r/, depedendo do dialeto), gerando a palavra resultante: "cata";

b) Memória de trabalho fonológica (MTF). Capacidade para manter e processar representações fonológicas por até alguns segundos na memória verbal de curto-prazo. A memória de trabalho fonológica pode ser avaliada por meio de tarefas de apreensão de seqüências de estímulos verbais com número crescente de itens. A testagem é efetuada até o ponto em que o indivíduo não a consegue mais reproduzir a seqüência (span of aprehension). A reprodução da seqüência na ordem direta avalia a capacidade de armazenamento e a reprodução na ordem inversa o componente operacional da memória de trabalho. A memória de trabalho é recrutada para as manipulações mentais envolvidas na tarefa de supressão de fonemas;

c) Acesso rápido ao léxico fonológico (ALF). A leitura fluente exige que o leitor acesse rapidamente as formas fonológicas das palavras, de modos que as mesmas sejam pronunciados e/ou o seu significado  acessado. O acesso léxico-fonológico é geralmente avaliado através de tarefas de nomeação rápida automatizada nas quais o probando precisa nomear rapidamente uma seqüência restrita de itens fonologicamente representados e que se repetem algumas vezes. Quanto maior for a capacidade de nomeação rápida, maior será a capacidade de representação e processamento na memória de trabalho.

O que esses três componentes (CF, MTF e ALF) têm em comum que justifique a sua categorização sob o guarda-chuva de um construto denominado processamento fonológico, o qual estaria comprometido na dislexia? Aparentemente apenas  o fato de que as tarefas que avaliam esses três componentes consistem da manipulação de representações fonológicas. 

Ora, sabe-se que a leitura de palavras depende, justamente, da automatização de associações entre representações fonêmicas e representações grafêmicas. Mas, como esse processo está alterado na dislexia? O problema poderia estar na natureza das representações fonológicas, no acesso e manipulação das mesmas. Mas o problema poderia também ser visual, resultante de uma degradação das representações ortográficas. Ou ainda de uma dificuldade no processo de associação multisensorial entre grafemas e fonemas. É importante notar aqui que essas hipóteses não são mutuamente excludentes.

Para compreender melhor  a eventual contribuição do processamento fonológico para a dislexia é mister esclarecer no que consiste o processamento fonológico e como ele pode estar alterado na dislexia. Essa é a missão que se atribuiu Franck Ramus em uma série de estudos conduzidos na primeira década do Século XXI (Ramus e Szenkovits, 2009). Ramus é professor da Ecole Normal Supérieure (Figura 1) e o seu trabalho merece ser destrinchado, senão por ter resolvido definitivamente o problema, ao menos pela elegância do método. 


 Figura 1 - Franck Ramus, Ecole Normal Supérieure

Como mencionei acima, esse programa de pesquisa merece os respeitos nem tanto pelo resultado, mas sim pelo modo engenhoso, pela elegância com que explorou o método cognitivo-neuropsicológico. Ou seja, Ramus levou a neuropsico-lógica do processamento de informação ao seu limite. Tirou dela o que dava para tirar e o seu trabalho pode ser usado como inspiração para outros programas de pesquisa.

A neuropsico-lógica consiste em construir um modelo de processamento de informação para um determinado processo psicológico que precisa ser analisado. A seguir são criadas tarefas que avaliam cada um dos componentes do modelo. O segredo é construir as tarefas de forma tal que elas contenham, cada uma, algum ingrediente exclusivo a determinado componente do modelo. A seguir as tarefas são aplicadas a grupos de participantes normais e/ou a pacientes com lesões ou disfunções cerebrais relativamente localizadas ou restritas a algum sistema. Procuram-se então padrões de dissociação entre as diversoas tarefas e grupos de paciente, de forma a isolar o(s) componente(s) do modelo que possa(m) estar comprometido(s).

Ramus investigou dois grupos de jovens universitários, um com e outro sem dislexia (controles). A pergunta a ser respondida era se a dislexia consiste em um comprometimento ou degradação das representações fonológicas ou em uma dificuldade em acessar e/ou manipular essas representações.

Mais uma vez, é importante ressaltar que essas hipóteses não são mutuamente excludentes. Se os disléxicos apresentassem, p. ex., dificuldades para discriminar entre fonemas ou sílabas com diferenças contrastivas mínimas, isso poderia ser interpretado como uma evidência de que as representações fonêmicas não são de boa qualidade (hipótese de degradação). A hipótese de degradação das representações fonêmicas é compatível com modelos que atribuem as dificuldades na dislexia a uma inércia temporal no processamento sináptico-neural. O indivíduo não consegue discriminar os fonemas constrastivos porque o seu sistema auditivo-fonêmico funciona com uma resolução temporal menor, que não permite realizar as discriminações temporais críticas na faixa de algumas dezenas de milissegundos. Com isso poderia ficar difícil abstrair o conceito de fonema de modo a correlacioná-lo com sua representação grafêmica.

Mas as representações fonológicas podem estar preservadas e a dificuldade residir apenas na velocidade de acesso às mesmas ou na manipulação dessas  na memrepresentações fonológicas na memória de trabalho (hipótese de acesso). No primeiro caso a dificuldade pode ser avaliada através da nomeação rápida automatizada. No segundo caso através de testes de apreensão de seqüências com número crescente de itens. 

A validade do teste entre essas hipóteses alternativas depende do controle de variáveis intervenientes que pudessem confundir os resultados. Aqui é que entra o modelo cognitivo. O modelo permite identificar todas as representações e processos potencialmente envolvidos, desenvolvendo tarefas o mais seletivas possíveis, que permitam o isolamento ou dissecção cognitiva desses componentes. 

O modelo utilizado por Ramus é apresentado na Figura 2. O modelo procura articular os três tipos principais de representações potencialmente envolvidas: ortográficas, fonêmicas, articulatórias e semânticas. Essas representações são organizadas em etapas ou canais de input e output sendo manipuladas através de buffers (ou sistemas de memória de curto-prazo). O modelo permite o fluxo de informação por uma série de vias ou rotas, algumas bem complexas, mas que não são relevantes para responder à questão colocada. 


Figura 2 - Modelo cognitivo-neuropsicológico do processamento fonológico-lexical (Ramus e Szenkovits, 2009).

A partir do modelo cognitivo-neuropsicológico do processamento lexical, Ramus e Szenkovits (2009) desenvolveram um conjunto de tarefas com o objetivo de identificar os componentes comprometidos na dislexia. Ou seja, se o problema é com a qualidade das representações fonológica, com o acesso e manipulação das mesmas, ou ambos. 

A variáveis controladas e/ou manipuladas por Ramus e Szenkovits (2009) e suas respectivas tarefas são discutidas a seguir:

a) Lexicalidade: Comprometimento em nível lexical ou sublexical (fonológico)? Utilização de palavras ou de pseudo-palavras como estímulos;

b) Etapa de processamento: Tarefas de discriminação fonêmica recrutam apenas o canal de input. Tarefas de repetição recrutam tanto o canal de input quanto de output;

c) Articulação: Se o sistema articulatório estiver envolvido na tarefa, o desempenho deve ser afetado qunando oindivíduo simultaneamente precisa articular uma seqüência fonológica sem sentido (p. ex., bababa...);

d) Capacidade de memória: Os participantes precisam discriminar ou repetir seqüências monossilábicas de palavras ou pseudo-palavras com número crescente de itens. Se o desempenho piorar à medida que aumenta o número de estímulos, isso indica uma saturação da memória de curto-prazo;

e) Velocidade de processamento: Velocidade de articulação de seqüências fonológicas. 

As diferenças entre os indivíduos com e sem dislexia ocorreram apenas em função do aumento da carga de memória e nas tarefas de velocidade. Não houve diferenças nas tarefas sensíveis à lexicalidade, ao canal ou etapa de processamento ou efeito da articulação. Os autores concluiram que o problema fonológico na dislexia é uma dificuldade de acesso. Ou seja, as representações parecem estar intactas e as dificuldades se restringem à sua manipulação rápida na memória de curto-prazo.

Dizer que essa pesquisa de Ramus e Szenkovits (2009) resolve a questão do processamento fonológico na dislexia seria ir além das tamanquinhas. Mas o trabalho merece respeito pelo seu valor heurístico. Os autores espremeram a neuropsico-lógica ao máximo, extraindo todo o sumo que poderia ser extraído. Por um lado, ficam claras as limitações do método cognitivo-neuropsicológico, o qual precisa ser complementado de forma convergente com informações provenientes de outros métodos, tais como neuroimagem e simulações computacionais. Por outro lado, a abordagem metodologica, a neuropsico-lógica pode servir de inspiração para outros estudos.



Referência

Ramus, F., & Szenkovits, G. (2009). . Understanding the nature of the phonological deficit. In K. Pugh K., & P. McCardle (eds) How children learn to read: Current issues and new directions in the integration of cognition, neurobiology and genetics of reading and dyslexia research and practice (pp. 153-169). New York: Psychology Press.






















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