Wednesday, February 21, 2018

INTELIGÊNCIA, ESCOLARIZAÇÃO FORMAL E TRANSTORNOS DE APRENDIZAGEM

As correlaçoes entre inteligência e desempenho escolar são altas. A inteligência geral é o principal preditor da aprendizagem escolar. Ao mesmo tempo, a escolarização promove a inteligência, principalmente mas não exclusivamente o vocabulário e a compreensão leitora. 

Uma inteligência normal é um critério importante para estabelecer o diagnóstico de transtornos específicos de aprendizagem, tais como discalculia e dislexia. É o famoso critério de discrepância. Para ser diagnosticada com dislexia, por exemplo, uma criança precisa ter um desempenho em leitura de palavras isoladas inferior à expectativa estabelecida pelo seu QI. 

O critério de discrepância para a definição e diagnóstico de transtornos específicos do desenvolvimento é criticável por diversas razões. Uma delas é que, como a inteligência e o desempenho escola se correlacionam pode haver regressão para a média aumentando o risco de diagnósticos falso positivos no caso de crianças com inteligência alta e de diagnósticos falsos negativos no caso de crianças com inteligência baixa. 

Um segundo motivo é que não existem diferenças icognitivas qualitatitavas importantes quanto aos mecanismos de aprendizagem da leitura. P. ex., as crianças com inteligência normal aprendem melhor pelo método fônico. Mas as crianças com deficiência intelectual também. E é fácil entender o porquê. A ortografia é a mesma. O diferencial da ortografia alfabética é a correlação grafema-fonema. E essa precisa ser aprendida por todas as crianças, independetemente do seu QI. Há evidências, inclusive, de que crianças com transtornos do desenvolvimento aprendem  a ler mais facilmente pelo método fônico. É que a correlação grafema-fonema depende das habilidades fonológicas, as quais  são organizadas parcialmente de forma modular e relativamente independemente da inteligência.

Um diagnóstico falso negativo é injusto porque priva uma criança com deficiência intelectual do acesso a tratamento. Um diagnóstico falso positivo também é problemático porque fabrica um transtorno e obscurece a natureza dos eventuais problemas enfrentados por crianças com inteligência mais alta. 

Na minha opinião, a diferença crucial é quanto ao prognóstico. Uma criança com inteligência normal que apresenta dificuldades para aprender a ler e não tem a natureza do seu problema reconhecido, representa um desperdício humano. O indivíduo vai acabar aprendendo a ler aos trancos e barrancos, por conta prrópria. Mas corre o risco de se transformar em u prm analfabeto funcional. Ou seja, uma pessoa que poderia fazer uso da leitura na sua vida mas fica privada dessa habilidade. Trata-se de uma potencialidade de desenvolvimento adaptativo e altamente produtivo que é jogada no lixo.

Com isso não estou dizendo que as crianças com deficiência intelectual não possam e não devam aprender a ler. Ao contrário. Não existem razões biológicas pelas quais uma criança com deficiência intelectual leve ou moderada não possa aprender a ler as palavras. A diferença final vai aparecer na compreensão leitora, que será muito mais difícil para as crianças com deficiência intelectual. Não usar os métodos adequados para ensinar crianças com defciência inteletual a aprender a ler também é uma tragédia humana. Também é um desperdício de potencial e uma fonte de sofrimento. 

A inteligência influencia a aprendizagem da leitura de duas maneiras. Nas fases iniciais de aprendizagem, de leitura de palavras, a inteligência é importante. Mas não é o fator principal. As crianças com inteligência mais alta aprendem a ler as palavras mais rapidamente. Mas as criatnças crianças com deficiência intelectual também aprendem a ler as palavras. Apenas mais lentamente.

A inteligência é crucial para a compreensão leitora. A compreensão é uma habilidade bem mais complexa que depende da habilidade de leitura de palavras, do vocabulário, da capacidade de fazer inferências verbais, memória de trabalho, da teoria da mente, dos mecanismos específicos de processamento textual etc. Enquanto a aprendizagem da leitura de palavras dura de três a quatro anos, a apreendizagem da compreensão leitora é uma tarefa para a vida. 

Os estudos longitudinais mostram que a inteligência já é importante no início, para a aprendizagem da leitura de palavras, mas vai se tornando cada vez mais importante, à medida que a ênfase progressivamente recai sobre a compreensão. 

Mas eu falei acima que a relação entre inteligência e desempenho escolar é de mão dupla. Como investigar a influência da escolarização formal sobre a int eligência? Esse é um problema cabeludo. Não há como privar as crianças do acesso ao ensino formal. A não ser em circunstâncias excepcionais. P. ex., em um  país no qual o Patrono da Educação é o Paulo Freire e no qual as crianças pobres são excluídas do acesso a um ensino público de qualidade não supreende que o desempenho em leitura seja um desastre e a inteligência populacional fique um desvio-padrão abaixo da média dos países minimamente desenvolvidos. 

Os resultados de um experimento natural no qual as crianças são privadas do acesso ao ensino formal por razões sócio-culturais foi descrito com  a população da Zâmbia (Campbell et al., 2013). Os autores avaliaram a inteligência não-verbal de mais de 1500 na Zâmbia, cerca de 40% das quais não freqüentavam a escola. Os resultado principais são mostrados na Figura 1.

Figura 1- Distribuição dos escores de inteligência não-verbal (NI) de mais 1500 crianças zambianas estratificadas por idade, sexo, localização (urbana ou rural) e escolarização (freqüentando escola ou não freqüentando escola) (Campbell et al., 2012).

Conforme se pode ver na Figura 1, os escores de NI (inteligência não-verbal) aumentam com a idade e são muito semelhantes entre meninos e meninos. Conforme previso pela teoria da seleção sexual, a distribuição dos escores nos meninos é mais espalhada. Ao menos na faixa de inteligência alta, uma vez que os autores não incluiram crianças com deficiência intelectual no estudo.

As diferenças mais pronunciadas foram observadas em função da localidade e escolarização. Residir na zona rural se associa com inteligência mais baixa. Mas a diferença mais brutal diz respeito a freqüentar a escola. As crianças fora da escola têm inteligência mais baixa e existe um efeito de dose. Um ano fora da escola já contribui para diminuir os escores de inteligência.

Um a outra coisa legal desse estudo é que a influência da escolarização é avaliada sobre a inteligência não-verbal, que depende mais da genética e menos da cultura. A escolarização não influencia apenas aspectos verbais da inteligência, tais como o vocabulário.

O ponto fraco desse "experimento natural" é a falta de controle das razões pelas quais 40% das crianças ficaram fora da escola. Essas razões poderiam estar ligadas à inteligência, invalidando o estudo. De qualquer forma, o artigo alimenta o espírito inquieto. 

Qual é a importância desse estudo para os neuropsicólogos?

1. A relação entre inteligência e desempenho escolar é de mão dupla. A inteligência prediz mas ao mesmo tempo é fortemente inluenciada pela escolarização formal. 

2. Se quisermos aumentar a inteligência e o desenvolvimento humano dos brasileiros precisamos ensinar as crianças a ler e a fazer contas.

3. Os neuropsicólogos podem ter um papel importante, diagnosticando e orientando a educação de crianças com dislexia e discalculia.

4. Os neuropsicólogos podem ter um papel importante divulgando os métodos instrucionais mais eficientes e metendo o pau nas besteiras que se comete na educação nesse País.


Referência

Campbell, D., Bick, J., Yrigollen, C. M., Lee, M., Joseph, A., Chang, J. T., & Grigorenko, E. L. (2013). Schooling and variation in the COMT gene: the devil is in the details. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 54(10), 1056-1065.







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