Wednesday, October 04, 2017

Por que as funções executivas são importantes na escola?

Recebi essa semana o meu exemplar do livro das Profas. Janice Pureza e Rochele Fonseca (2016) propondo um programa para as professoras estimularem as funções executivas dos seus alunos.

Reproduzo abaixo o prefácio que tive a honra que escrever. 

 As funções executivas são o fantasminha na máquina que "faz o mexe" na hora que precisa.
Precisamos tratar bem o nosso fantasminha.



Prefácio

A escola representa um desafio para as crianças por diversos motivos.  As demandas da escola são múltiplas, cognitivas, emocionais e comportamentais. Entre tantas outras coisas, a criança aprende a identificar relações sistemáticas entre seu esforço e o resultado atingido, as notas.

O gosto pelo estudo é uma habilidade adquirida. Ninguém nasce gostando de estudar. O envolvimento em atividades escolares, como o para casa ou a preparação para uma prova, exige que a recompensa seja postergada. A criança precisa compreender que abre mão de uma gratificação imediata menor, como o brinquedo, a TV, a internet ou o vídeo-game, por uma gratificação maior, porém projetada no futuro.

Além de se projetarem no futuro, as recompensas associadas ao estudo são de natureza bastante abstrata, tais como boas notas e aprovação dos adultos. Ou, eventualmente, ser aprovado no ENEM em um futuro percebido como bem longínquo.

Do ponto de vista cognitivo, as tarefas escolares são intrinsecamente desafiadoras. A aprendizagem de fatos e conceitos, a aquisição de habilidades demandam atenção deliberada e esforço. Recursos de processamento no executivo central da memória de trabalho são exigidos em todas as etapas do processo de aprendizagem escolar.

Quando a criancinha está aprendendo a contar, ela enfrenta uma tarefa de atenção dividida, que lhe exige alocar recursos de forma estratégica na monitorização da série verbal que vai sendo recitada, na correspondência um a um entre os numerais recitados e os objetos que estão sendo contados e com o significado quantitativo dos símbolos e procedimentos empregados.

A todo instante a aprendizagem escolar faz a criança se confrontar com desafios cognitivos. Um pouco mais adiante na sua vida a criança, precisa se haver com os fatos aritméticos. A aprendizagem da tabuada de multiplicação exige capacidade de representação temporária dos problemas, processamento em busca da solução correta, inibição de  respostas irrelevantes errôneas etc. Todos esses processos ilustram demandas por processamento controlado ou executivo.

Além de postergar a recompensa, muitas crianças precisam lidar com a frustração por não conseguirem acompanhar o currículo. Os motivos são variados. O principal deles é a variabilidade gaussiana das habilidades cognitivas na população. Um currículo escolar padrão pode atender adequadamente as necessidades de cerca de dois terços dos alunos em uma classe.

Para alguns poucos alunos o currículo será muito fácil. Para um grupo maior, muito difícil. Essas crianças precisam então manejar as questões emocionais e motivacionais complexas relacionadas à inadequação do currículo padrão às suas necessidades individuais. Isso impõe à criança novas demandas por auto-regulação,

Um currículo percebido como muito fácil é desmotivador. O engajamento diminui quando a tarefa é percebida como pouco desafiadora. Por outro lado, um currículo percebido como além da própria capacidade é aterrador. A ansiedade de desempenho consome recursos de processamento cognitivo na memória de trabalho, os quais se fazem necessários para a aprendizagem.

A dificuldade em lidar com os problemas motivacionais e emocionais relacionados à inadequação curricular pode ter efeitos comportamentais. Algumas crianças passam a se comportar mal, agitando ou emitindo comportamentos desobedientes, desafiadores ou agressivos. Outras crianças passam a se esquivar das atividades escolares como forma de evitar a decepção. As dificuldades comportamentais, por sua vez, agravam os problemas de aprendizagem.

Os desafios colocados pela aprendizagem escolar são crescentes. A escolarização começa cada vez mais cedo, a quantidade de informação a ser assimilada cresce exponencialmente, sem falar na competição inerente à economia de mercado. Os pais pressionam por desempenho escolar e as crianças e professoras precisam corresponder à demanda.

Na sociedade da informação a educação da população constitui o principal ativo econômico. Junto com a compreensão leitora e a aritmética, as funções executivas ou habilidades de auto-regulação e pensamento estratégico constituem  alguns dos principais pré-requisitos para o sucesso social e profissional.

Se as habilidades de auto-regulação e funcionamento executivo já são importantes para as crianças com desenvolvimento típico, mais importantes ainda elas se tornam para as crianças que apresentam algum tipo de dificuldade de aprendizagem ou comportamento. As dificuldades com o funcionamento executivo constituem um fator de risco para os problemas de aprendizagem e comportamento.

A capacitação de educadores em técnicas de estimulação do desenvolvimento das funções executivas assume então importância redobrada. Esse é o desafio dos educadores, quer sejam pais ou professoras. Felizmente a psicologia cognitiva avançou muito no conhecimento sobre os mecanismos auto-regulatórios subjacentes à aprendizagem escolar, como fica demonstrado nessa obra. O progresso é tanto que já permite propor programas de intervenção fundamentados em modelos conceituais válidos e evidências empíricas consolidadas.

É com essas considerações em mente que eu me sinto extremamente honrado e feliz em poder saudar e recomendar o manual que as Profas. Janice Pureza e  Rochele da Paz Fonseca e suas  colaboradoras elaboraram com extremo cuidado para auxiliar as professoras a estimularem o desenvolvimento das funções executivas de seus alunos.

O Programa CENA de capacitação de educadores em neuropsicologia da aprendizagem com ênfase em funções executivas e atenção é referenciado em um arcabouço conceitual extremamente atualizado. O rigor metodológico seguido pelas autoras garantiu a construção de um produto muito bem acabado. A natureza didática do texto e a aplicabilidade prática das atividades propostas tornam o CENA atraente para uso no ambiente escolar. 

Tenho certeza de que a adoção do CENA reverterá em importantes benefícios para a formação das professoras na área de ciências cognitivas, repercutindo sobre a prática escolar e contribuindo para melhorar a educação no Brasil. Estou convicto de que o CENA auxiliará as professoras e os alunos a correspondem aos desafios cognitivos colocados pela sociedade do conhecimento.


Referência

Pureza, J. R. & Fonseca, R. P. (2016). CENA. Programa de capacitação de educadores sobre neuropsicologia da aprendizagem com ênfase em funções executivas e atenção. Ribeirão Preto: BookToy.

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