Sunday, July 02, 2017

APRENDER BRINCANDO? A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Em 2015 participei de um evento na Academia Brasileira de Ciências sobre ensino de ciências. Uma das palestras mais interessantes a que assisti foi de um chinês. Os chineses descobriram o construtivismo e resolveram estruturar todo o ensino de física do ensino médio utilizando os princípios dessa abordagem. Eles estão preparando centenas de atividades, cobrindo todo o currículo, de forma tal que os alunos aprendam pela descoberta, ou seja, induzam os conceitos, princípios e fatos da física por conta própria.

A seriedade com que os chineses estão encarando a aprendizagem por descoberta me fez lembrar da minha época do colegial. Na Década de 1970 eu gostava de ler uma HQ bagaceira chamada Fritz the Cat. Um dos episódios era delirante. A CIA teria descoberto um complô dos chineses para invadir os EUA. Eles estariam construindo um foguete para milhares de chineses. Cada chinês sentaria em frente a um cano e assopraria. A força dos assopros chineses propulsionaria então a nave até os EUA e seria o fim do Capitalismo.

A palestra e essas lembranças juvenis me chamaram atenção para um quê de paradoxal do qual se reveste a seriedade e diligência com que os chineses estão encarando o construtivismo, ou seja, o construtivismo “alla chinese”. O paradoxo é o seguinte: Os pedagogos precisam ter uma trabalheira danada, investindo um tempão e um dinheirão para construtir um currículo que permita aos jovens aprender quase que brincando. Aprender sem dor. Será isso possível? Quem viver verá. O projeto chinês vai permitir testar essa hipótese numa escala jamais vista. Nas últimas décadas os chineses têm dado um banho nos ocidentais no que se refere à aprendizagem da matemática e ciências. Se, após a introdução do construtivismo, as notas dos chineses não baixarem ou continuarem subindo, será uma vitória e tanto do construtivismo. Paradoxalmente será uma vitória também do Ocidente, uma vez que o construtivismo é  uma criação ocidental.

O projeto é paradoxal também porque implica em que os físicos tenham descoberto os fatos, conceitos e princípios dessa disciplina, os quais serão, por sua vez debulhados pelos pedagogos de modo que os alunos possam aprender “sem dor”. O projeto chinês me parece uma contradição em termos. Se o construtivismo visa estimular a criatividade dos alunos, encorajá-los a descobrir novas soluções e problemas, que criatividade é essa, a qual consiste em levar o aluno a induzir justamente aquilo que havia sido pré-programado pelos pedagogos? A coisa toda é muito divertida.

Cada um se diverte como pode. A diversão exerce um papel crucial na aprendizagem. A brincadeira é a atividade por excelência das crianças, principalmente mas não exclusivamente na idade pré-escolar. Quanto maior for a disponibilidade de brinquedos na infância, melhor será o desempenho acadêmico futuro. A brincadeira aguça a curiosidade, estimula a imaginação e desenvolve a imitação e as habilidades sociais etc. A brincadeira é uma estratégia evolutivamente estável em todos os mamíferos sociais, a qual cumpre a importante função de preparar o indivíduo para a vida adulta.

Influenciada por autores  como Rousseau, Dewey, Vygotsky e Piaget, a pedagogia sempre perseguiu o ideal da aprendizagem pela brincadeira, descoberta e interação social. Os chineses nada mais estão fazendo do que levar esse ideal às suas últimas conseqüências. À sua maneira, é claro. Considerando sua diligência, escala demográfica e capacidade do estado de mobilizar recursos para uma dada finalidade. Se a coisa funcionar, como disse acima, vão dar um banho.

Mas, vai funcionar? Funciona muito bem nas sociedades tecnologicamente menos sofisticadas. Tudo que um indivíduo precisa aprender para viver em uma sociedade iletrada, uma tribo indígena por exemplo, ele pode fazê-lo brincando. Ou seja, em situações ecologicamente cotidianas de interação com pares e adultos, a quais são plenamente revestidas de um significado pessoal e cultural imediato e, portanto, intrinsecamente motivadoras.

Esse contexto informal é suficiente para adquirir uma série de habilidades fundamentais, tais como cozinhar, discriminar entre plantas comestíveis e não-comestíveis, fabricar utensílios e adornos, construir arcos e flechas, caçar, guerrear etc. Isso não quer dizer que a aquisição dessas e outras habilidades não exija esforço. Ao contrário. Um exemplo muito ilustrativo é o dos arqueólogos cognitivos contemporâneos que se dedicam a reproduzir o processo de fabricação dos machados de pedra lascada dos nossos ancestrais. Os caras dedicam anos de trabalho intenso para tentar se aproximar da perfeição com a qual nossos ancestrais produziam seus artefatos.

Processo de fabriçação do machado de pedra ancestral 
(cf. Mithen, 1996, "The prehistory of the mind", London: Thames & Hudson).

Será que os nossos curumins ancestrais tinham problemas  motivacionais? Será que eles tinham “preguiça” de aprender a fabricar seus artefatos? Difícil saber. Mas é plausível que alguns tivessem mais habilidade com os machados de pedra e, portanto, se engajassem mais nessa atividade. E outros tivessem menos habilidade e, portanto, fossem menos diligentes na fabricação dos seus machados. Imagino que poderia haver uma divisão rudimentar do trabalho. Alguém que tivesse boa mira poderia trocar o produto da sua caça por um bom machado de pedra etc.

Imagino também que não havia  um currículo obrigatório mínimo que coagisse todos os indivíduos a adquirir perícia com os machados de pedra. Será que a educação pela pedra realmente ocorria de forma mais natural, menos coerciva? Excetuando-se a coerção das agruras da própria vida, é claro. Se não havia um currículo obrigatório mínimo provavelmente não havia uma régua única que medisse todos os indivíduos. Cada um poderia encontrar seu próprio caminho para florescer e se reproduzir. O currículo da pedra compreendia apenas aquelas habilidades consideradas por David C. Geary como biologicamente primárias. Ou seja, habilidades que fazem parte do repertório cognitivo da espécie e que estão ao alcance de quase todos com algum esforço mas de modo informal e ecologicamente contextualizado.

A situação contemporânea é completamente diferente. Nós temos um currículo mínimo universal e obrigatório. Medimos todos os indivíduos através da mesma régua, a qual avalia habilidades biologicamente secundárias, tais como a leitura, escrita, aritmética, geometria, álgebra etc. Independentemente da inteligência, temperamento, habilidades ou interesses específicos. Escreveu, não leu, pau comeu.

Aprender a ler e escrever é diferente de aprender a catar feijão, apesar ou justamente por causa da analogia proposta pelo poeta:


Catar feijão

João Cabral de Melo Neto (1965)


1.
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.


2.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.



Se o cara tiver dificuldade ou preguiça de catar feijão, acabará quebrando um dente e vai aprender, pelas conseqüências, a importância de catar e bem catado.Ou sua patroa poderá catar por ele. Se o cara tiver dificuldade ou preguiça de aprender a ler, vai se dar mal na prova e terá dificuldades para arrumar um emprego ou se manter empregado.

As habilidades biologicamente secundárias, tais como ler, escrever e fazer contas, não fazem parte do aparelho psíquico ou repertório cognitivo natural humano. São frutos da evolução cultural. Sua aprendizagem é possibilitada mas não garantida pelas nossas habilidades cognitivas. Como esses artefatis culturais não passaram pelo crivo da seleção natural e sexual, sua aprendizagem é sujeita a enorme variabilidade interindividual. Simplesmente não eram critério para a sobrevivência e reprodução dos nossos ancestrais.

A motivação para a aquisição de habilidades biologicamente secundárias também não passou pelo crivo da seleção. A motivação para estudar precisa ser aprendida, sendo derivada de uma motivação mais básica de exercer controle sobre o ambiente, mas de forma muito indireta, mediada  por uma série de passos cognitivos intermediários.

Para adquirir gosto pelo estudo, a criança preciso obter resultado com o mesmo. Não se adquire gosto por aquilo no que não se obtém sucesso. Aprender a ler e a escrever as palavras e os números demandam de três a quatro anos de trabalho muito árduo pela criança. A recompensa é projetada em um futuro muito abstrato: “Se você aprender na escola, vai passar no ENEM, fazer uma boa faculdade e ter um bom salário etc.” Além de inteligência e habilidade nos conteúdos específicos, a aprendizagem escolar exige também capacidade de auto-regulação, ou seja, capacidade de controlar o comportamento por recompensas de natureza abstrata e projetadas no futuro.

Não surpreende, portanto, que um sem-número de alunos considere a escola chata e não se motive para o estudo. Seria surpreendente se fosse de outra maneira. O que fazer então? Como tornar a escola menos chata? É possível isso? O projeto chinês de construtivização do ensino da física está perseguindo justamente isso. Ou seja, tornar o ensino mais lúdico, mais atraente. É um esforço louvável. Mas talvez tenha seus limites. Será que é possível ensinar tudo que as crianças precisam aprender para se adaptar à Sociedade do Conhecimento apenas na farra? Sem um investimento de tempo e esforço? Sem se confrontar com a complexidade e tediosidade dos muitos passos intermediários que levam à perícia e ao gosto por um ofício?

O ideal da aprendizagem pela brincadeira é meritório, mas me parece comportar uma série de riscos. Se nem tudo puder ser aprendido apenas pela brincadeira, limitar à aprendizagem à farra, pode limitar o currículo, reduzindo-o àquilo que as crianças podem aprender sem esforço deliberado. Ou seja, àquilo que as crianças aprenderiam por conta própria na sua ecologia cotidiana, sem auxílio de uma pedagogia formal.

Atualmente, muitos jovens inteligentes, brilhantes mesmo, desdenham a leitura em função de outras mídias, tais como o YouTube. O YouTube é a principal fonte de informação para muitos jovens. Quando o cara não sabe uma coisa, vai lá no YouTube e encontra uma aula sobre o assunto. Quando o cara quer estudar cálculo, vai lá no YouTube e tem um curso completo de cálculo. A leitura se ressente da competição com mídias que são intrinsecamente muito mais atraentes.

O que fazer então? YouTubizar todo o ensino? Desistir da leitura assim como estamos desistindo da caligrafia? Talvez essa seja uma opção para capturar o interesse da massa de descontentes. Mas isso certamente criará outros problemas. É duvidoso que possamos abrir mão do grau de abstração e logicidade proporcionado apenas pela linguagem escrita. A escrita organiza o nosso pensamento e nos leva a um grau de abstração e precisão do qual não podemos prescindir.

Talvez resolvêssemos e levássemos a sério a idéia de midiatirzar todo o ensino. Ao invés de pagar lentes coloridas para as crianças com dificuldades para ler, o estado dispensaria um tablet para cada criança com acesso irrestrito à internet e todos os conteúdos curriculares seriam administrados de forma multimidiática. Mas, será que conseguíriamos realmente ministrar dessa forma todos os conteúdos e habilidades que constituem a nossa herança cultural e que permitem sua evolução ulterior? Acho duvidoso. Sou chato. Mas acho que tem coisas às quais temos acesso apenas através da escrita. Mesmo que a maioria dos alunos se YouTubize, sempre vai continuar existindo uma galerinha que continuará cultivando a leitura.

Talvez essa minoria que continue cultivando a leitura se restrinja ao estimado 1% da população que na Antigüidade Judaica sabia ler e escrever e compilou a Bíblia por escrito por volta do ano 600 AC. Será que a maioria da população composta por YouTubers vai precisar então de um equivalente aos levitas, que lhes traduzam em linguagem midiática o conhecimento abstruso encerrado pela língua escrita?

Tornar a aprendizagem escolar mais lúdica e atraente para as crianças é, sem dúvida alguma, muito importante. Mas pode ter seus limites. Levada ao seu extremo pode representar uma nova forma de segregação social, entre os iniciados e os não-iniciados na leitura. A midiatização do ensino não exterminará os nerds da vida, aquele 1% da população que adora ler ou fazer listas de cálculo. Um dos objetivos do ensino universal obrigatório é justamente diminuir as diferenças cognitivas entre os diversos segmentos da população. Isso pode ser feito nivelando por baixo ou pelo alto. Isso pode ser feito aumentando ou diminuindo o contingente da população que tenha acesso a formas superiores de cultura e tecnologia. O contingente de nerds na espécie humana pode aumentar ou diminuir, mas não se extinguirá. A nerdice confere vantagens adaptativas em uma espécie que ocupa o nicho ecológico cognitivo.

Um passo importante para a democratização do ensino, a meu ver, consiste em entender que a aquisição de alguns artefatos culturais é um processo complexo que exige esforço. A questão é: Como estabelecer uma ponte entre objetivos abstratos projetados no futuro e a necessidade concreta e imediata de reforçadores? Diminuir a exigência curricular pode ser um primeiro passo importante no sentido de proporcionar uma sensação de realização e motivar as crianças e os jovens. Mas não podemos perder de vista os objetivos maiores, sob pena de aumentar o fosso cognitivo entre os que sabem ler a Bíblia e os que não sabem. Aprender a ler pode ser tão duro quanto morder pedra. Entender que isso é assim, que isso faz parte da vida, pode ser um primeiro passo importante.

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