Monday, June 05, 2017

QUATRO MOTIVOS PARA ODIAR A ESCOLA

A falta de motivação para estudar e freqüentar a escola, bem como para se comportar de forma civilizada na mesma são problemas que estão na ordem do dia. A aversão em relação ao estudo e à escola contrasta com a demanda por uma educação diferenciada na Era Cognitiva que vivemos.  Por que o estudo e a escola são tão aversivos para muitas crianças? Por que pais, professores e profissionais de saúde não sabem lidar com essas dificuldades? Os motivos pelos quais muitas crianças odeiam a escola podem ser analisado por meio de um modelo de quatro níveis. O modelo compreende mecanismos cognitivos, comportamentais, neurais e evolucionários. O modelo ajuda a sistematizar as evidências de forma que se possa pensar em estratégias mais eficazes de manejo. Neste ensaio informal vou começar por uma contextualização do problema, esboçando a seguir de forma muito resumido o modelo. O ensaio será publicado em seis posts: a) Quatro motivos para odiar a escola; b) Motivos cognitivos; c) Motivos comportamentais; d) Motivos neurais; e) Motivos evolucionários; e f) Remédios. Vou procurar fazer bem que nem se deve fazer em uma redação do ENEM. Começarei descrevendo o problema, a seguir tento identificar suas causas e, finalmente, proponho algumas soluções possíveis.




QUAL É O PROBLEMA?

A falta de motivação para o estudo e a indisciplina na sala de aula constituem motivos freqüentes de consulta para neuropsicólogos e outros profissionais da saúde e educação. Quem é pai ou mãe de mais de um filho sabe que a motivação para o estudo e o comportamento são muito variáveis de uma criança ou jovem para outro. A sensação que se tem, entretanto, é de que esses problemas são cada vez mais freqüentes.

E eles não aparecem somente no ensino fundamental e médio. Por vezes, até mesmo na graduação eu tenho a sensação de que estou empurrando um elefante lomba acima, quando se trata de motivar os alunos para o estudo. E o que é pior: o elefante fica esperneando o tempo todo, redobrando o meu trabalho. Não é nada fácil convencer os alunos de que é uma boa para eles o que eu tenho a ensinar. A falta de motivação dos alunos de graduação contrasta com o interesse dos alunos de pós-graduação. Parece que leva cada vez mais tempo para que os jovens se convençam de que precisam aprender para ser alguém na vida.

Essas percepções subjetivas de pai, clínico e professor universitário são corroboradas pela experiência de professoras do nosso círculo de relacionamentos e pela imprensa. Quem não tem uma parente ou amiga professora que foi ameaçada ou agredida pelos seus alunos? A mídia está freqüentemente relatando casos e mais casos de conflitos entre alunos e professores. Muitas vezes com conseqüências desastrosas para ambas as partes. Muitas professoras são agredidas verbalmente e fisicamente pelos alunos. Basta googlear um pouquinho para aquilatar a dimensão do problema. As agressões a professores escalaram durante as invasões a escolas e faculdades ocorridas em 2016. Inúmeros casos foram relatados, p. ex., de professores universitários agredidos, inclusive fisicamente, por cometerem o pecado de querer dar aulas, contrariando assim uma agenda política.



Mas as professoras não são a única parte agredida. Infelizmente, os alunos também são, muitas vezes submetidos a toda sorte de abusos. Incluindo abuso físico. Numa creche que meus filhos freqüentavam, certa vez eu vi uma professora sacudindo uma criança. Devia ser uma criança mal-comportada. A professora ficou constrangida. Só que, ao invés de se emendar, ela resolveu descontar em um dos meus filhos, que por acaso também poderia ser caracterizado como mal-comportado, conforme o critério que se usasse. O menino pagou os pecados na tal creche, que apesar de ser pública, nos custava bem caro.

O abuso moral dos alunos pode assumir diversas formas, das mais às menos sutis. Algumas professoras relatam que o motivo do encaminhamento para a investigação neuropsicológica é que a criança é “burra” ou “lerda” e que “não aprende”. Felizmente isso é relativamente raro. Mas acontece com uma freqüência maior do que o desejável.

Certa vez nós estávamos atendendo dois irmãos gêmeos, extremamente agitados mas inteligentes. A professora tinha umas carinhas felizes e umas carinhas tristes que ela colocava no caderno dos meninos conforme o seu desempenho. Acertou quem respondeu que eles só ganhavam carinhas tristes. Dá para ser feliz recebendo apenas carinhas tristes no caderno? Uma das observações no caderno era assim: “O fulaninho é uma criança tão linda e inteligente. Pena que seja tão mal comportado”.

Outro problema observado  com alguma freqüência é a negligência em relação a abusos por parte de colegas. As crianças com deficiência intelectual, problemas de aprendizagem e de comportamento têm uma probabilidade maior de sofrerem abuso físico e moral por parte dos colegas. Trata-se do infame “bullying”. Segundo o relato de pais e crianças e pela minha própria experiência como pai, não é incomum que as professoras e autoridades escolares ignorem as situações em que uma criança está sendo vítima de bullying. Encarar o problema e tomar as medidas necessárias pode dar bastante trabalho, além de ser desgastante. Adicionalmente, as escolas privadas não querem perder alunos. Por mais problemáticos que eventualmente sejam.

Uma forma refinada de abuso é a doutrinação ideológica. O problema é tão grave a ponto de segmentos da Sociedade Brasileira, costumeiramente tão apática, reagirem com um movimento vigoroso pela “Escola sem Partido”. O movimento pela Escola sem Partido não é imune a efeitos colaterais. Pode colocar em cheque um dos pilares da educação, que é a liberdade de cátedra. Até que ponto um professor pode ir na defesa das suas convicções políticas e morais? Inegavelmente, o limite já foi ultrapassado há muito tempo. Mas o que fazer? Acho que não dá pra instalar uma “polícia da neutralidade política e da moralidade” nas escolas. Isso representaria o fim da liberdade acadêmica. O que fazer então quando nossos filhos e clientes são submetidos às ideologias e concepções morais mais exóticas? O Escola sem Partidos tem o mérito de levantar essa questão e apenas abre os olhos de pais e alunos para os seus direitos. Ou seja, para o fato de que eles não são obrigados a se submeterem a processos mais ou menos explícitos de lavagem cerebral. E que têm o direito constitucional de se defenderem.

Ah, mas quem disse que a doutrinação ideológica na escola afeta a motivação dos alunos? Afeta sim. Posso dar o exemplo dos meus filhos. Ao longo dos inúmeros ENEMs da vida que prestaram para entrar na Universidade, eles faziam uma brincadeira: “Tirar nota boa na área de ciências humanas é muito fácil. Basta selecionar a opção mais comunista e contrária ao senso comum”. Eles tinham também uma consciência muito clara do que era esperado deles na redação do ENEM: “Descrever uma situação socialmente problemática, demonstrar indignação politicamente correta e propor alguma solução estatizante para o problema. De preferência algum tipo de legislação que interfira com os costumes das pessoas”.  A prova maior de que a doutrinação ideológica afeta a motivação dos alunos é o fato de que propicia o desenvolvimento das atitudes cínicas que foram descritas.  Cinismo esse, aliás, que é típico dos regimes totalitários e atesta uma hegemonia de opinião.

A gravidade dos problemas motivacionais e disciplinares pode ser auferida pelo resultado de pesquisas internacionais. Periodicamente a mídia  repercute os resultados de uma pesquisa da OECD chamada TALIS (Teaching and Learning International Survey) (). Segundo os resultados da versão de 2013 o Brasil é campeão em mau comportamento na sala de aula. As professoras relatam que gastam de 10% a 30% do tempo em sala de aula para resolver questões disciplinares (mediana = 20%). A mediana para quase 40 países participantes da pesquisa é igual a 10% do tempo, variando de 6% a 16%.

O Brasil e o México se alternam na liderança em mau comportamento. No caso brasileiro, os relato de vivências de professoras foram de 11% para vandalismo e roubo, 35% para intimidação verbal entre alunos, 7% para ferimentos físicos entre alunos, 13% para intimidação verbal a professores e 7% para uso e posse de drogas etc. Frente a essa situação e anomia social, aliada às condições de trabalho inadequadas, encargos crescentes relacionados à inclusão e falta de supervisão, além dos baixos salários, não é de surpreender que a exaustão emocional ligada ao trabalho (burnout) seja um tema recorrente entre professoras.

O que está acontecendo? Talvez os nossos curumins sejam mesmo muito rebeldes ou não recebam a dose suficiente de “limites” em casa. Talvez as nossas professoras não sejam suficientemente preparadas nos cursos de pedagogia para lidar com as questões disciplinares. Ou ainda, talvez os profissionais de saúde mental não sejam habilitados a orientar pais e professores quanto às estratégias motivacionais e disciplinares mais eficientes e, ao mesmo tempo, promotoras da autonomia individual.

Mas será que a psicologia tem algum remédio para o mal da desmotivação e mau-comportamento? Eu acredito que sim e procurarei demonstrá-lo ao longo dos próximos posts. A psicologia cognitiva e comportamental, as neurociências e a psicologia evolucionista desenvolveram uma série de modelos empiricamente fundamentos que permitem uma compreensão mais abrangente e aprofundada das questões motivacionais e disciplinares no contexto familiar e escolar. Não se trata, obviamente, de nenhuma panacéia. Mas sim, de estratégias que podem ser eficazes no limite do que a realidade permite. Surpreendemente, esses avanços científicos, alguns dos quais remontam a décadas, permanecem desconhecidos por profissionais da educação e da saúde mental. A seguir ofereço um aperitivo dos quatro níveis de análise do modelo.


RESUMO DO MODELO

Motivos cognitivos: As habilidades escolares são aversivas. Ninguém nasce gostando de estudar. Estudar é um comportamento aprendido. Aprender na escola exige postergação da gratificação, concentração, esforço, persistência. Para adquirir gosto pelo estudo é necessário obter sucesso. O fracasso em aprender é desmotivamente. O fracasso escolar pode estar relacionado a características da criança, da professora ou do contexto familiar e escolar. As abordagens educacionias baseadas na aprendizagem por colaboração e descoberta podem impor uma sobrecarga de processamento à memória de trabalho dos alunos. Confrontada com problemas mal descritos em situações pouco estruturadas, a criança dispende sua capacidade de processamento na busca de uma solução por tentativa e erro, restando menos recursos cognitivos para a memorização. A importância do conhecimento também não tem sido suficientemente reconhecida e valorizada. Crianças mais pobres apresentam dificuldades culturais, um déficit de conhecimento, que precisa ser suprido de modo a que elas desenvolvam habilidades escolares mais avançadas. A compreensão de textos, p. ex., depende fundamentalmente do vocabulário, ou seja, conhecimento de mundo. A aprendizagem por descoberta favorece a curiosidade e a iniciativa. Mas, os métodos instrucionais podem ser imprescindíveis para alunos que têm dificuldades.

Motivos cognitivos: As atividades escolares precisam competir com outras ocupações que são intrinsecamente reforçatórias, tais como a TV, o videogame, a internet e o jogo de bola. A concorrência é desleal. Estratégias precisam ser desenvolvidas para aumentar o nível de controle percebido dos alunos para que eles se engajem nas atividades. Algumas crianças têm muita dificuldade para postergar a recompensa. Essas crianças tendem a se desmotivar e/ou a emitir comportamentos inadequados. Os comportamentos inadequados são então diferencialmente reforçados pelos adultos. O resultado é um ciclo vicioso de interações coercivas no qual, ao tentar coibir os comportamentos inadequados da criança, o adulto acaba reforçando-os. Motivar os alunos para o estudo depende de uma compreensão da natureza intrinsecamente aversiva das atividades escolaes para muitas crianças e do desenvolvimento de estratégias de reforçamento sistemático através de adequação curricular e modelagem, que lhes permitam aumentar gradualmente o envolvimento com as tarefas acadêmicas.

Motivos neurais: Existe um dissociação relativa no processo de maturação de sistemas dopaminérgicos regularadores do comportamento motivado e da cognição na adolescência. Os mecanismos cognitivos frontoestriatais relacionados à capacidade de processamento na memória de trabalho amadurecem mais cedo do que os mecanismos antecipatórios das conseqüências hedônicas das decisões. A alta capacidade de memória de trabalho e resolução de problemas hipotético-dedutivos, relacionadas às funções do córtex prefrontal dorsolateral, contrasta com a miopia para as conseqüências potencialmente desastrosas associadas a determinados comportamentos de risco. Os mecanismos antecipatórios das conseqüências do comportamento são implementados com a ajuda do córtex prefrontal ventromedial, encontrando-se ainda relativamente imaturos na adolescência. Adicionalmente, o comportamento motivado dos adolescentes é fortemente enviesado para a gratificação imediata, integrada no nucleus accumbens, em detrimento dos motivos de prudência integrados pela amígdala. A família e a escola precisam desenvolver estratégias para compensar o imediatismo hedônico dos jovens, de modo que eles não comprometam seu futuro.

Motivos evolucionários: As estratégias reprodutivas humanas podem ser epigeneticamente reguladas para duas trajetórias. Uma mais qualitativa, caracterizada pela postergação da puberdade e do início da atividade sexual, seletividade sexual, investimento parental maciço em um número menor de filhos e, de uma modo geral, pelas virtudes associadas à temperança. A outra estratégia reprodutiva é quantitativa, caracterizando-se pela antecipação da puberdade e do início da atividade sexual, promiscuidade sexual, investimento parental baixo em um número maior de filhos, associando-se a dificuldades mais genéricas de aversão à postergação do reforço. Quando a ecologia familiar é mais estável, havendo disponibilidade de recursos, a estratégia qualitativa pode prosperar. Em ecologias adversas, a estratégia quantitativa é mais eficiente do ponto de vista de mandar os genes de uma geração para outra. Ainda que possa resultar em infelicidade e comportamentos psicossocialmente desadaptativos no nível do indivíduo. Segundo o modelo de previsão do tempo, a carência de recursos, promiscuidade, falta de estrutura familiar, vivências de negligência e abuso, modelos agressivos etc. na primeira infância predispõem o indivíduoa enveredar por uma estratégia reprodutiva quantitativa. Estratégia quantitativa essa que se associa a baixo engajamento no estudo e comportamentos socialmente inadequados.


CONCLUSÃO

Esse modelo é tão abrangente que não pode ser testado empiricamente na sua totalidade. Mas cada componente do modelo se baseia nas melhores evidências científicas. Clinicamente, esse modelo integrativo da motivação escolar tem orientado meu trabalo com pais e professores. O modelo pode ser usado como arcabouço teórico para orientar pais e professores de crianças com dificuldades motivacionais e comportamentos inadquados na escola. Quero quer que pode ajudar a melhorar a educação dos nossos curuminzinhos.

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