Friday, June 09, 2017

DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NÃO RECONHECIDAS PODEM DESMOTIVAR OS ALUNOS?

Um poster que será apresentado em Porto Alegre no Brain 2017: World Congress on Brain, Behavior and Emotion faz uma importante contribuição à compreensão das dificuldades de aprendizagem (Lima et al., 2017).

A utilização de categorias oriundas da epidemiologia clinica aplicadas às dificuldades de aprendizagem é um assunto controverso. Frias e Júlio-Costa (2013) analisaram o debate acerca da chamada "medicalização do ensino". Segundo os críticos da "medicalização do ensino", a utilização de categorias nosológicas tais como dislexia, discalculia e TDAH é imprópria e extremamente prejudicial aos alunos.

Os críticos da "medicalização" consideram que a utilização de categorias diagnósticas corresponde a uma forma de rotulação das crianças e responsabilização das mesmas pelo fracasso escolar. Ainda segundo essa perspectiva, os indivíduos não podem ser responsabilizados pelo fracasso escolar, uma vez que esse é um problema sócio-político-econômico bem mais amplo. Segundo essa perspectiva, o fracasso escolar tem características estruturais, representando uma forma de opressão de segmentos dominantes sobre setores marginalizados da sociedade.

Um dos principais argumentos para a utilização das categorias diagnósticas no contexto escolar é que algumas formas de comportamento e/ou dificuldades de aprendizagem escolar representam importantes fatores de risco. Quando não reconhecidos e adequadamente tratadas as dificuldades de comportamento e aprendizagem comprometem o desenvolvimento do indivíduo a longo prazo. P. ex., as dificuldades de leitura de matemática reduzem o salário, a empregabilidade e se associam ao risco de outros desfechos adversos tais como problemas psicopatológicos externalizantes e internalizantes (Auerbach et al., 2008, Parsons & Bynner, 2005). Ritchie e Bates (2013) constataram, p. ex., que o desempenho em matemática aos 7 anos de idade é preditivo do status sócio-econômico aos 42 anos.

As dificuldades de aprendizagem são desmotivantes e comprometem a qualidade de vida dos alunos (Balasz et al., 2015, Felder-Puig et al., 2008). A experiência clinica exatamente o oposto ao que é previsto pelos críticos da suposta "medicalização". Quando associado a um processo efetivo de aconselhamento, o diagnóstico tem um caráter libertador. O diagnóstico contribui para aliviar os temores as tensões entre as crianças e os adultos. A partir do diagnóstico as crianças e os adultos podem construir uma interpretação cientificamente fundamentada, social e pessoalmente aceitável da natureza das dificuldades. A partir do reconhecimento e dimensionalização da problema, as energias podem ser direcionadas para o seu enfrentamento. Após o diagnóstico e aconselhamento, as crianças mudam sua atitude em relação à escola, de desamparo, revolta e rejeição para otimismo e disposição para coping. 

O argumento matador contra às críticas à suposta "medicalização" vem, entretanto, do intrincado perfil de interações entre a pobreza e as dificuldades de aprendizagem escolar. Todo mundo sabe que a pobreza e a escola pública se associam a dificuldades de aprendizagem (Oliveira-Ferreira et al., 2012). Ser pobre e estudar em uma escola pública são fatores de  risco para mau desempenho escolar.

O que pouca gente percebe é que as cosnseqüências das dificuldades de aprendizagem são mais graves para os pobres do que para as pessoas mais bem situadas socio-economicamente. É justamente disso que trata o trabalo a ser apresentado por Lima e cols. (2017) no Brain 2017. A pesquisa foi conduzida em Porto Alegre e Belo Horizonte, através de uma parceria entre o NEUROCOG-UFRGS e o LND-UFMG. 

O estudo investigou o desempenho escolar e o nível sócio-econômico em 155 anos do 4o. ano do ensino fundamental, com idades de 9 a 11 anos (Lima et al., 2017). Um dos principais resultados é que o nível sócio-econômico modera os efeitos da dislexia sobre o desempenho em leitura. Ou seja, independemente do nível sócio-econômico há um grupo de crianças que podem ser classificadas como disléxicas por apresentarem desempenho em leitura abaixo de um ponto de corte de normalidade. Isso não é nenhuma novidade. A novidade é o efeito de moderação, o qual pode ser traduzido da seguinte maneria: A gravidade das dificuldades de leitura é maior para as crianças quanto mais baixo for o nível sócio-econômico.Quer então que a pobreza não apenas é um fator de risco para dificuldades de aprendizagem mas também para uma maior gravidade das dificuldades encontradas pelas crianças.

A implicação prática mais direta é que as dificuldades de leitura não reconhecidas e adequadamente tratadas têm um impacto maior sobre os mais pobres. Em uma família de classe média, os pais têm recursos para procurar assisência quando a criança apresenta dificuldades persistentes de aprendizagem escolar. Isso não acontece nas famílias mais pobres, que não têm acesso a recursos diagnósticos e terapêuticos fora da escola. A criança apresenta mau desempenho escolar. Mas o mau desempenho é considerado "normativo" para a escola pública e para as famílias de baixa renda. Então não desperta maiores preocupações nem medidas apropriadas por parte do sistema escolar. Esses indívíduos são então expostos a uma situação de dupla desvantagem ou duplo handicap: São prejudicados uma vez por serem pobres e por não terem acesso a uma educação de qualidade e outra vez por não terem suas dificuldades reconhecidas.


Ao contrário do que é implícito no argumento da anti-"medicalização", não é o diagnóstico mas a ausência desse que contribui para responsabilizar a crianças pelas falhas do sistema. As diversas habilidades cognitivas têm uma distribuição gaussiana na população. Isso significa que alguns indivíduos, ainda que tenham ineligência normal, vão inevitavelmente apresentar dificuldades com alguma exigência curricular, quer seja quanto à auto-regulação, leitura e aritmética.  Políticas públicas que privam o acesso da população carente a serviços diagnósticos na área de neuropsicologia são perversas. Elas são propugnadas em nome da "justiça social" mas apenas contribuem para barrar o acesso dos pobres à educação, o mais eficiente elevador social que se conhece.


Referências

Auerbach, J. G., Gross-Tsur, V., Manor, O. & Shalev, R. S. (2008). Emotional and behavioral characteristics over s six-year period in youths with persistent and nonpersistent dyscalculia. Journal of Learning Disabilities, 41, 263-273.

Balazs, J., Miklosi, M., Toro, K. T., & Nagy-Varga, D. (2016). Reading Disability and Quality of Life Based on Both Self-and Parent-Reports: Importance of Gender Differences. Frontiers in Psychology, 7.

Felder-Puig, R., Baumgartner, M., Topf, R., Gadner, H., & Formann, A. K. (2008). Health-related quality of life in Austrian elementary school children. Medical care, 46(4), 432-439.

Frias, L. & Jùlio-Costa, A. (2013). Os equívocos e os acertos da campanha: "Não à medicalização da vida". Psicologia em Pesquisa - UFJF, 7, 3-12.

Lima, M., Piccolo, L.R., Júlio-Costa, A., Lopes-Silva, J. B., Haase, V. G., & Salles, J. F. (2017). Socioeconomic status moderates the effects of learning disabilities on reading performance. Porto Alegre: Brain 2017. World Congress on Brain, Behavior, and Emotion. Poster não-publicado.

Oliveira-Ferreira, F., Costa, D. S., Micheli, L. R., Pinheiro-Chagas, P., & Haase, V. G. (2012). School achievement test: normative data for a representative sample of elementary school children. Psychol. Neurosci. 5, 157–164.

Parsons, S., and Bynner, J. (2005). Does Numeracy Matter More? London: University of London, Institute of Education National Research and Development Centre for Adult Literacy and Numeracy.

Ritchie, S.J., & Bates, T.C. (2013). Enduring links from childhood mathematics and reading achievement to adult socioeconomic status. Psychological Science, 24, 1301–1308.

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