Sunday, June 25, 2017

A VALIDADE DA NEUROIMAGEM FUNCIONAL

O apelo midiático da neuroimagem functional, principalmente da ressonância magnética funcional é inegável. Não menos chamativa é a ignorância ou má-fé com que o assunto é coberto pela imprensa. Por vezes se estabelece um conluio entre jornalistas que não entendem nada do assunto e cientistas inescrupolosos que desejam marquetear seu trabalho. O público sai mal informado.

Na maioria das vezes as notícias são exageradas no sentido positivo. As figurinhas coloridas geradas pelos métodos de neuroimagem exercem uma apelo poderoso e transmitem a falsa sensação de que tais padrões refletem a ativação em tempo real do cérebro engajado em uma dada tarefa.

Mas, ocasionalmente, a repercussão é negativa. Como é o caso de uma notícia divulgada em 2016 no El País e que ressurge periodicamente no FaceBook. Tanto os vieses positivos quanto negativos na cobertura da mídia refletem uma ignorância muito grande quanto às potencialidades e dificuldades associadas com os métodos de neuroimagem funcional.

Os métodos de neuroimagem funcional permitem registrar diferenças no fluxo sangüíneo e consumo de oxigêncio em áreas cerebrais específicas associadas à realização de diferentes tarefas cognitivas. Tais métodos representam um avanço extraordinário no nosso conhecimento. Pela primeira vez estamos em condições de analisar, ainda que de modo imperfeito, como o cérebro é ativado por diferentes tarefas cognitivas e estados psicológicos. Há pouco tempo ainda, as únicas informações disponíveis sobre os correlatos neurais de processos psicológicos dependiam da análise dos padrões de comportamento de pacientes com lesões cerebrais específicas. A neuroimagem funcional permite que tais correlações sejam investigadas in vivo e de forma não-invasiva.

Mas os cientistas não são ingênuos a ponto de supor, ou mal-intencionados a ponto de vender, a idéia de que os métodos de neuroimagem funcional não têm suas limitações ou ameaças à validade. A ciência é um empreendimento precário. Sua força advém do princípio da replicabilidade e teste de hipóteses. Os resultados científicos são precários e provisórios, modificáveis à medida que os conhecimentos vão se acumulando. É desse ceticismo saudável e da abertura a resultados negativos dos testes de hipóteses e refinamento metodológico que a ciência deriva seu caráter cumulativo.

As limitações da neuroimagem funcional são por demais conhecidas dos neurocientistas. A validade dos métodos de neuroimagem funcional advém da sua consiliência com outras fontes de evidência e acomodação às teorias vigentes. Nenhum método é absolutamente válido, por si só. A validade depende da sua convergência com outras observações e com a teoria. Algumas ameaças à validade da neuroimagem funcional são discutidas a seguir. Todas são nossas velhas conhecidas.

1. Os métodos de neuroimagem funcional não investigam diretamente a atividade neuronal. Eles investigam o fluxo sangüíneo e o consumo de glicose e oxigênio regionais. Refletem, portanto, apenas de forma indireta a ativação neuronal. Sua validade se baseia na pressuposição amplamente demonstrada de correlação entre o fluxo sangüíneo, consumo de glicose e oxigênio e atividade neuronal. Modificações puramente informacionais nos padrões de atividade neuronal, que fossem independentes de variações energéticas, não seriam captadas pelos métodos de neuroimagem funcional.

2. Os métodos de neuroimagem funcional não fornecem nenhuma medida direta de qualquer processo psicológico. O que todos eles fazem é comparar a atividade relacionada a uma determinada tarefa com a atividade em “repouso” ou com a atividade durante a realização de outra tarefa. Nâo existe grau zero de ativação na neuroimagem funcional. Mesmo em “repouso” o cérebro continua ativo. O que os pesquisadores conseguem fazer é comparar padrões de ativação em diferentes estados psicológicos.

3. A variabilidade interindividual nos estudos de neuroimagem funcional é muito grande. Diferentes participantes utilizam-se de estratégias distintas para resolver as tarefas propostas e estratégias diferentes podem gerar padrões de ativação bem distintos.

4. A variabilidade interindividual e as diferentes estratégias potencialmente empregadas dificultam aos estudos de neuromagem funcional identificar quais áreas cerebrais são cruciais para a implementação de uma determinada tarefa. Apenas a análise neuropsicológica de pacientes cérebro-lesados e os métodos de indução de lesões temporárias por estimulação (magnética ou elétrica) transcraniana permitem identificar as áreas cerebrais crucialmente envolvidas com um determinado processo psicológico. Os métodos de neuroimagem funcional atuam mais no contexto da descoberta, contribuindo para gerar hipóteses correlação estrutura-função. Os métodos neuropsicológicos é que atuam no contexto da verificação, contribuindo para a invalidação das hipóteses levantadas pela neuroimagem.

5. Os métodos de neuroimagem funcional são limitados quanto à sua resolução espacial. Os métodos de neuroimagem registram a ativação de agregados de milhões de neurônios, não conseguindo discriminar os padrões de ativação de áreas vizinhas muito próximas entre si.

6. Uma das principais limitações dos métodos de neuroimagem funcional diz respeito à resolução temporal. Os métodos atuais não permitem diferenciar eventos que ocorrem numa janela temporal de dezenas a centenas de milissegundos. Há evidências psicológicas de que essa janela temporal inferior a um segundo é extramemente relevante para a cognição e o comportamento. Os padrões de ativação distribuídos mostrados nas belas neuroimagens podem, portanto, refletir tanto ativação simultânea de diferentes grupos neuronais geograficamente dispersos, quanto ativação seqüencial de grupos neuronais distintos.

7. Finalmente, há os problemas estatísticos. As cores usadas nas imagens representam a probabilidade de que a ativação de uma dada área se associe à tarefa e não ao acaso. Como nos estudos de neuroimagem são realizadas análises repetidas da ativação de milhares de voxels (áreas com um milímetro cúbico) surge um problema estatístico bem complexo. A realização de análises estatísticas sobrepostas, ou seja, o cálculo das probabilidades para diferentes regiões, inflaciona o risco de obter resultados falsos positivos. Se o critério estatístico usado for muito frouxo, todas as áreas cerebrais podem ser consideradas como ativadas por uma dada tarefa, aparecendo um resultado falso positivo. Por outro lado, se o critério estatístico for muito estrito, resulta um efeito falso negativo. Ou seja, um efeito existente pode não ser detectado.

A reportagem do El País faz um escarcéu superficial, mal-intencionado e pouco informativo para o público em geral a partir de uma crítica metodológica do programa SPM, o principal software estatístico usado para analisar e construir os métodos de neuroimagem (Eklund et al., 2016). Isso é café pra lá de requentado. E em nenhum momento os autores do artigo repercutido declaram que seus resultados "invalidam 15 anos de pesquisa com neuroimagem funcional". Isso saiu da cabeça do jornalista.

E não invalidam por uma razão muito simples. A validade da neuroimagem funcional não se fundamenta apenas em um pacote ou estratégia de análise estatística. O processo de validação é muito mais amplo e complexo. Como mencionei acima, a estratégia usada é de validação convergente. A neuroimagem funcional é ótima para gerar hipóteses. Tais hipóteses são retidas se elas forem consilientes com os resultados de outros métodos (psicologia cognitiva, neuropsicologia, neurocirugia, eletroencefalografia, potencais evocados, simulações em computadores, teoria da evolução, antropologia, genética etc.) e consistentes com um arcabouço teórico mais amplo. As hipóteses geradas pela neuroimagem funcional são retidas apenas quando apoiadas por outras fontes independentes de evidência.

Tudo isso não quer dizer que o uso da neuroimagem funcional não possa nem deva ser aperfeiçoado. Infelizmente, a imprensa parece mais interessada em causar sensação e criar fake news do que informar propriamente o indistinto público. Até o Donald Trump foi citado na tal reportagem do El País. Nâo sei o que ele tem a ver com o assuntoo. Acho que entrou na dança porque, supostamente, é especialista em fake news.


Referência

Eklund A, Nichols TE, Knutsson H. Cluster failure: Why fMRI inferences for spatial extent have inflated false-positive rates. Proc Natl Acad Sci U S A. 2016 Jul 12;113(28):7900-5.

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