Sunday, May 14, 2017

TEORIA SIMPLES DA LEITURA


Minha boa tia, Lurdes Magali Frizzo, curtiu o meu post sobre “Como o cérebro aprende a ler as palavras?” e me perguntou sobre como é que fica a interpretação. A interpretação vem depois. A leitura de palavras já é suficientemente complexa para as criancinhas. A compreensão de leitura é mais complicada.

Um dos modelos mais aceitos atualmente da aprendizagem da leitura é a chamada “teoria simples da leitura” (Cain, 2010, Gough, 1996). Segundo a teoria simples da leitura, primeiro as crianças devem aprender a ler as palavras. A interpretação de textos deve ser introduzida devagarinho, passando a ser o foco principal da leitura a partir do terceiro ou quarto ano.



Aprender a ler as palavras é uma tarefa gigantesca para as criancinhas. A prontidão para a alfabetização depende uma série de fatores: a) Motivação: a criança precisa estar interessada em aprender a ler e não pode ficar ansiosa com a tarefa; b) Auto-regulação: a criança precisa poder se controlar e ficar prestando atenção na professora e trabalhando concentrada nas tarefas por um bom período de tempo; c) Conhecimento das letras e princípio alfabético: é necessário que a criança conheça as letras, os seus sons e que descubra ou lhe seja ensinado o princípio alfabético, ou seja, que as letras e conjuntos de letras (grafemas) representam os sons das palavras (fonemas); e) Consciência fonêmica: um dos principais correlatos da aprendizagem da leitura, constituindo-se tanto em preditor quanto desfecho, é a habilidade de segmentar as palavras nas suas unidades sonoras contrastivas mínimas, os fonemas; f) Acesso lexical: a automatização da leitura depende da habilidade de acesso rápido às representações sonoras (fonológicas) das palavras; g) Memória de trabalho: É preciso manter todas as correlações entre letras e sons na memória de trabalho e fundí-las em uma pronúncia plausível da palavras; e h) Sensopercepção, coordenação motora e atenção: A criança precisa conseguir identificar os caracteres visuais, sem embaralhá-los, havendo também a necessidade de associar a forma visual com representações cinestésicas, que permitem a escrita.

Dá pra ver então que, do ponto de vista cognitivo, a leitura de palavras isoladas já e uma façanha. É tão árduo o trabalho necessário para adquirir fluência de leitura, que isso toma os três anos iniciais do ensino primário (Dehaene, 2012). Não bastasse a complicação cognitiva da leitura de palavras, a compreensão leitora é mais terrível ainda (Cain, 2010). Ninguém conhece ao certo todas as habilidades cognitivas envolvidas na compreensão leitora. A compreensão de leitura é uma das atividades cognitivas mais complexas que existem. É uma tarefa para a vida toda.

Correndo o risco de esquecer alguma coisa importante, vou mencionar algumas das habilidades cognitivas envolvidas na compreensão de leitura: a) Leitura de palavras: Não há como ler e interpretar um texto sem conseguir ler as palavras; b) Vocabulário: O leitor precisa ter conhecimento de mundo para entender o significado de um texto; c) Inteligência verbal: É necessário fazer inferências verbais. Grande parte do conteúdo do texto não é explicitada, havendo necessidade de fazer inferência; d) Inteligência e habilidades atencionais visoespaciais: O leitor precisa se orientar espacialmente no texto, sem perder o rumo e sem pular ou negligenciar palavras ou pedaços de palavras; e) Processamento sintático-semântico no nível da sentença: Há a necessidade de entender como é que as palavras se articulam sintaticamente no interior das frases, de modo a transmitir conteúdos; f) Processamento textual propriamente dito: Necessário para integrar as informações das diversas frases entre si; g) Memória de trabalho: Manutenção de todas as informações na mente de modo a poder integrá-las; h) Motivação: A criança precisa aprender a gostar e não ter medo da leitura.

As evidências científicas e a prudência recomendam então que primeiro seja trabalhada a leitura de palavras isoladas, sendo a compreensão introduzida e trabalhada de forma paulatina e crescente. É assim que se faz no mundo inteiro (Morais, 2014). Menos em alguns rincões nos quais existe resistência à incorporação de evidências científicas ao ensino. Muitos educadores seguem um raciocínio distinto. Esses educadores estão muito preocupados com as dificuldades que as crianças oriundas das camadas menos priviliegiadas a população enfrentam para se alfabetizar. Essas dificuldades são de ordens diversas, envolvendo tanto habilidades cognitivas, causadas em grande parte por falta de desenvolvimento da linguagem oral, falta de estimulação, falta de familiaridade com a língua escrita etc. quanto motivacionais, associadas a ansiedade de desempenho e percepção da inutilidade de se esforçar para ascender na escala social.

O diagnóstico de muitos educadores é então de que falta contexto para essas crianças das classes populares que têm dificuldades para se alfabetizar (Freire, 1970). Segundo essa linha de pensamento, a escola deveria então se aproximar mais do mundo das crianças, usando estímulos e atividades que lhes sejam familiares e mais próximas da sua realidade. Ficar decodificando as palavras e correlacionando grafemas com fonemas parece ser, segundo essa perspectiva, uma atividade muito descontextualizada, e remota das condições de vida das crianças. Há a necessidade então de trabalhar com textos que façam parte do seu contexto, que transmitam significados mais palpáveis e próximos da sua realidade.

Uma outra questão colocada é a das relações de poder (Bagno, 2003). As dificuldades de aprendizagem são interpretadas como uma resistência à opressão da norma culta. É daí que vêm as cartilhas com o “nóis pega os peixe”. Essa vertente mais ideológica parte do pressuposto que que a missão da educação não é adestrar mão de obra para o mercado de trabalho, mas sim formar cidadãos conscientes e reflexivos das relações de classe e poder na sociedade (Freire, 1970, vide crítica da ideologização do ensino em Bernardin, 2012, Ioschpe, 2012).

O problema é que esse diagnóstico está errado e o remédio não funciona. O resultado é a miséria da educação no Brasil. Mas o problema é mais grave ainda. Não tem como ascender à cidadania consciente sem conseguir ler e fazer as contas. Não tem acomo ascender socialmente sem dominar a norma culta. Desperdiçar as oportunidades para adquirir as ferramentas culturais básicas da cidadania com uma educação de má qualidade chega a ser uma perversidade. É uma perversidade que atinge de modo desigual os mais pobres e vulneráveis, roubando-lhes a oportunidade de ascender socialmente pela educação.

Enquanto isso em outros países os educadores estão cada vez envolvidos com a incorporação de evidência científicas oriundas da psicologia cognitiva e neurociências à sua prática educacional. Os primeiros frutos já estão sendo colhidos. Nos EUA, por exemplo, as dificuldades de alfabetização inicial (leitura de palavras) estão sendo superadas graças a programas intensivos de treinamento nas habilidades de decodificação fonológica das palavras (Willingham, 2011). As dificuldades começam a aparecer agora a partir do terceiro ou quarto ano, quando a ênfase passa a recar sobre a compreensão textual.

Obviamente, o objetivo da leitura é a compreensão. Mas não tem como colocar a carroça na frente dos bois. A leitura de palavras é mais simples e constitui um pré-requisito para a compreensão leitora, que é muito mais complexa.



Referências

Bernardin, P. (2012). Maquiavel pedagogo. Ou o ministério da reforma psicológica. Campinas: Ecclesia/Vide.

Bagno, M. (2003). A norma culta: língua & poder na sociedade brasileira; São Paulo: Parábola.

Cain, K. (2010). Reading development and difficulties. Oxord: BPS/Blackwell.

Dehaene, S. (2012). Os neurônios da leitura. Como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Penso.

Freire, P. (1970). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Gough, P. B. (1996). How children learn to read and why they fail. Annals of Dyslexia, 46, 3-20.

Ioschpe, G. (2012). O que o Brasil quer ser quando crescer? (e outros textos sobre educação e desenvolvimento). Rio de Janeiro: Objetiva

Morais, J. (2014). Alfabetizar para a democracia. Porto Alegre: Penso.

Willingham, D. T. (2011). Por que os alunos não gostam da escola. Porto Alegre: ARTMED.
 

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