Tuesday, October 25, 2016

POR QUE A HISTÓRIA FAMILIAR É IMPORTANTE E COMO REALIZÁ-LA?




A importância da história familiar é múltipla. Identificar casos de recorrência familiar do mesmo problema do cliente ou de outros transtornos do desenvolvimento ou psiquiátricos (recorrência cruzada ou co-segregação) é obviamente importante. A caracterização de recorrência familiar ajuda a identificar necessidades de saúde e aconselhar as famílias quanto aos procedimentos diagnósticos e intervenções eventualmente necessárias. P. ex., se uma criança com autismo tem irmãos menores é muito importante determinar se os mesmos apresentam alguma manifestação de um fenótipo autistítico ampliado, o qual possa representar um sinal de alerta. Quanto mais cedo o diagnóstico, mas eficaz o tratamento.
Alguns alunos custam a entender isso. Mas a unidade de atendimento é a família e não o indivíduo. Uma das coisas que mais me deixa feliz como professor é testemunhar os alunos aprendendo essa lição bem simples. Por vezes eu digo para os alunos que eles precisam avaliar os irmãos também e eles ficam me olhando com uma cara assim, como se eu fosse alguma espécie de marciano. Nâo sei se é preguiça de fazer a avaliação do irmão ou se eles acreditam que eu seja, mesmo, doido.
Quando uma família traz uma criança para avaliação neuropsicológica, ela está tendo uma oportunidade ímpar de ser avaliada por um profissional de saúde altamente diferenciado. Profissional esse que tem um compromisso não apenas com o diagnóstico e tratamento, mas também com o bem estar e o desenvolvimento humano. Os quais dependem do funcionamento da família como um todo. É a família toda que está tendo uma chance de acessar serviços mais sofisticados de saúde. O neuropsicólogo não pode privá-la dessa oportunidade.
Por vezes, pode se tratar apenas de uma doença comum, cujas manifestações ainda não foram reconhecidas como tal. Nesse caso o neuropsicólogo atua preventivamente, como profissional primário de saúde e encaminha a família para o Posto de Saúde. Fico abismado quando os alunos me perguntam se devem fazer alguma coisa ou não quando identificam algum sintoma ou problema potencial de saúde. É claro que têm que fazer alguma coisa. Tem que alertar a pessoa para a necessidade de diagnóstico e encaminhar para o Posto de Saúde.
O reconhecimento de recorrência familiar pode significar também a necessidade de encaminhamento para serviços especializados em genética, tanto para diagnóstico quanto para aconselhamento e intervenção. É crescente o número de doenças genéticas tratáveis. O tratamento de doenças genéticas é uma realidade com tendência de alta exponencial. O tratamento adequado depende do diagnóstico precoce. Infelizmente, apenas os casos mais graves de doenças genéticas são encaminhados para diagnóstico. As formes frustres não são reconhecidas e os indivíduos e as famílias ficam sofrendo suas conseqüências. Sem entender sua natureza e sem receber o atendimento adequado. É muito triste ver adolescentes com síndrome de Turner ou com síndrome de Prader-Willi que não foram diagnosticados, não receberam tratamento hormonal e, portanto, tiveram seu desenvolvimento físico e mental comprometido sem necessidade.
Acho que no SUS existe ainda, em grande parte, a mentalidade de que doença genética é coisa de rico. Nada mais longe da verdade. As doenças genéticas específicas são extremamente democráticas. Elas dão tanto no Chico quanto no Francisco. Por outro lado, as doenças multifatoriais são mais comuns nos pobres, que vivem em circunstâncias ambientais adversas e expementam níveis elevados de estresse.
Aí nós chegamos na utilidade da história familiar que mais me encanta. A pobreza, as dificuldades sociais, educacionais e econômicas são um fator de risco para os transtornos do desenvolvimento, incluindo as dificuldades de aprendizagem escolar. Um dos fatores ambientais que predispõem as crianças pobres às dificuldades de aprendizagem é a má qualidade do ensino.
Não causa espanto, portanto, que muitas crianças nos deixem perplexos. A criança tem inteligência normal. Baixa porem normal. Não apresenta nenhum dado de história clinica que sugira algum agravo ao sistema nervoso central. Não apresenta nenhuma discrepância no seu perfil cognitivo. Entretanto, a criança está com 12 anos ou mais e ainda não aprendeu a ler. É analfabeta. Não conhece nem as letras, muito menos o seu som.
Como o único fator de risco muitas vezes identificado é a pobreza ou analfabetismo parental, é grande a tentação de atribuir às dificuldades apenas à pobreza. A história famíliar costuma mostrar que isso pode ser falso em muitos casos. Freqüentemente a mãe é analfabeta, a família mora em condições precárias e o menino está com 15 anos e ainda não se se alfabetizou. Mas a história famíliar pode mostrar que os irmãos mais velhos não tiveram dificuldades de aprendizagem, se formaram e estão empregados. Ou pode mostrar que os irmãos menores estão mais adiantados que o nosso cliente.
Só uma história familiar bem feita nos permite identificar vulnerabilidades individuais. A  precariedade de vida da família certamente é um fator de risco para as dificuldades de aprendizagem. Só que nem todos os irmãos são afetados da mesma maneira. Alguns são mais susceptíveis do que outros às condições ambientais adversas. E essa susceptibilidade freqüentemente é de causa genética. Se isso não for levado em consideração, o nosso cliente não terá suas necessidades atendidas (vide Miranda et al., 2012).
Mas a história famíliar não pode ser feita de modo superficial. Nâo basta perguntar assim: “tem algum caso parecido na família?” Isso é uma porquice. Para fazer uma boa história familiar é preciso identificar com a informante, geralmente a mãe, todos os parentes de primeiro, segundo e terceiro grau. Então é preciso perguntar sobre cada um deles, como é o seu temperamento, se estudou ou tem dificuldades de aprendizagem, se a inteligência é normal, se trabalha, se tem problema com alcoolismo ou drogas, se é casado, se tem filhos, se tem alguma doença, qual foi a causa da morte etc. Só assim é que se consegue obter as informações relevantes.
Muitas vezes, a história familiar precisa ser realizada em mais de uma ocasião. A memória humana é associativa e reconstrutiva. Por vezes, na hora, a mãe não consegue lembrar. Daí ela sai da primeira consulta, fica pensando e acaba se lembrando de  algum detalhe que pode ser importante. Por isso é importante dar a oportunidade para que a pessoa relate sobre sua família em pelo menos uma segunda ocasião.

Referência
Miranda, M., Vianna, G. S., Haase, V. G., & Carvalho, M. R. S. (2012). A etiologia dos transtornos de aprendizagem é multifatorial: consequências para as políticas públicas. Boletim da SBNp, Nùmero 11, pp. 15-16. (Para ler o texto, clique aqui ou aqui).

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