Monday, September 12, 2016

A LÓGICA DA COMUNICAÇÃO E COOPERAÇÃO NA ANAMNESE



A história clinica é realizada em uma entrevista na qual o cliente relata os seus sintomas, contextualizando-os na sua história de vida.

Anamnese quer dizer através da memória. Na entrevista de anamnese o examinador atiça a memória do cliente, para que este se recorde e comunique as informações que possam ser relevantes para o diagnóstico neuropsicológico.

O sucesso da comunicação interpessoal na anamnese depende de vários fatores. Geralmente se fala em rapport, ou seja, no estabelecimento de uma relação empática, colaborativa, entre o cliente e o profissional.

Várias técnicas podem ser usadas para propiciar a construção do rapport, tais como os “cinco minutos para o paciente” (Bálint & Norrell, 1986) e “o que mais?” (Barrier et al., 2003). As técnicas ajudam, mas não substituem a empatia e o interesse genuínos.

Uma entrevista clinica é um exercício em teoria da mente. Requer a capacidade de interpretar fenomenologicamente os sintomas em termos das categorias diagnósticas da neuropsiquiatria e de interpretar fenomenologicamente o mundo na perspectiva do cliente. Ou seja, reconstruir a percepção que o cliente tem da realidade e o significado que atribui aos sintomas e o impacto que as dificuldades têm no seu funcionamento e adaptação psicossocial.

Um princípio importante é acreditar no relato do paciente. Acreditar que tudo o que a mãe está relatando é verdade. Isso é justificado pelo Princípio da Cooperação de Grice (1975). A idéia é que na interação verbal que caracteriza a anamnese, as pessoas querem se comunicar de forma honesta.



 
A condução da entrevista de anamnese se norteará pelo princípio da cooperação e máximas derivadas: os interlocutores querem se comunicar da melhor maneira possível e manter a comunicação. Segundo Grice, os interlocutores precisam "Make your contribution such as it is required, at the stage at which it occurs, by the accepted purpose or direction of the talk exchange in which you are engaged."

O objetivo da anamnese é formular um diagnóstico que propicie algum tipo de ajuda ao cliente. O cliente precisa ser sincero na comunicação das informações e o examinador deve zelar para que o cliente se sinta à vontade e confiante de que suas contribuições à comunicação serão respeitadas e valorizadas.

A maioria dos pacientes quer se comunicar honestamente com o neuropsicólogo. A primeira hipótese do neuropsicólogo deve sempre ser de que os sintomas relatados pelos clientes são genuínos e não forjados ou resultantes de fantasias.

Algumas vezes as pessoas mentem, fantasiam ou simulam sintomas. Mas essas situações são mais a excessão do que a regra. Os clientes procuram ajuda porque estão sofrendo e, na maioria das vezes, são sinceros. Um diagnóstico falso positivo - acreditar no cliente quando o mesmo mente - tem conseqüências menos graves do que um diagnóstico falso negativo – não acreditar no cliente quando o mesmo é sincero. É mais grave interpretar um sintoma genuíno como simulação do que um sintoma forjado como verdadeiro.

O Princípio da Cooperação pode ser interpretado como um caso particular do altruísmo recíproco (Ridley, 1998, Wright, 1994). O altruísmo recíproco é o cimento evolucionário que liga as pessoas de forma cooperativa. A dinâmica evolutiva social da espécie humana envolve tanto cooperação (principalmente intragrupo) quanto competição (principalmente intergrupo).

Grupos de cooperadores promovem sua aptidão evolutiva e aumentam a probabilidade de o seu pool de genes ser transmitido entre gerações sucessivas. O instinto básico na espécie é sempre então, se comunicar, cooperar, acreditar nas pessoas.

Mas os cooperadores são vítimas em potencial dos trapaceiros. Ou seja, de pessoas que desejam tirar vantagem, ludibriando os outros sem fazer sua parte. Em função disso, os cooperadores evoluiram heurísticas de detecção de trapaceiros, que os impedem de cair no conto do vigário.

Uma das principais e mais eficazes heurísticas contra os trapaceiro é o altruísmo recíproco. Numa interação social, os parceiros sempre devem acreditar que os outros agem bona fide. O altruísmo reciproco funciona quando as interações são repetidas. Se da primeira vez o indivíduo A foi cooperativo e o indivíduo B não reciprocou, da segunda vez o altruísta recíproco vai se abster de ajudar o egoísta.

Mas, se os cooperadores desenvolveram estratégias de detecção de trapaceiros e altruísmo recíproco, os trapaceiros por sua vez foram evoluindo estratégias cada vez mais sofisticadas para atingir seus intentos malévolos. Uma das mais poderosas é o auto-engano (Trivers, 2011). Se o trapaceiro acredita na veracidade das suas mentiras e simula suas más-intenções em bondade ele aumenta sua chance de não piscar na hora H e obter êxito no seu logro. O auto-engano é a heurística subjacente ao moralismo, uma das estratégias mais eficientes de controle social.

A entrevista de anamnese não é uma interação social que se esquive dessa corrida armamentista entre cooperadores e trapaceiros. Os motivos para os clientes não serem sinceros são múltiplos. Os sintomas neuropsicológicos ou os fatores de risco que a eles conduziram podem envolver vivência e comportamentos bem constrangedores. O cliente pode não se sentir à vontade e omitir detalhes que eventualmente sejam importantes para o diagnóstico. O remédio aqui é a empatia, a confiança.

Noutras circunstâncias, os clientes podem estar fantasiando ou atuando. O examinador precisa avaliar com precisão a percepção que o cliente tem da realidade. Em um número felizmente menor de casos os clientes podem estar agindo de má-fé. Nesses casos a contra-transferência, o sexto sentido é a ferramenta principal à disposição do examinador.

O importante é compreender que consiste em falta grave por parte do examinador não acreditar no paciente. Consiste em uma falta de respeito que deve ser evitada a todo custo. Em princípio, os clientes não mentem. A menos que mintam. Mas o ônus de detectar a trapaça, a fantasia ou a atuação recaem sobre o examinador, o qual deve ser muito criterioso.

Atribuir os sintomas à ansiedade da mãe ou da criança, sem um processo mais detalhado de busca por evidências e teste de hipóteses é uma falta gravíssima. Todos nós já passamos por essa ou situações parecidas. É doloroso, incomoda muito. Infelizmente é comum que se vá a um médico e o mesmo desdenhe dos sintomas como resultantes de ansiedades ou fantasias. Em casos mais graves ainda, alguns médicos fingem que fazem uma ausculta cardíaca ou pulmonar. Será que esses profissionais são tão idiotas que não lhes passa pela cabeça que, por mais ignorantes que sejam, os pacientes percebem a trapaça?

Recentemente tem acontecido uma coisa irritante comigo. Meus cabelos andam bem brancos. Talvez seja por causa disso que muitas secretárias ou médicos plantonistas de serviços de urgência se sintam no direito de me tratar como se eu fosse um ignorante ou demenciado. Adotando atitudes paternalistas em relação a mim e me explicando o óbvio, insultando a minha inteligência e faculdades intelectuais.

Infelizmente, o respeito e a sinceridade são commodities cada vez mais  escassas na assistência à saúde. A neuropsicologia é uma área nova de atuação profissional que terá mais sucesso quanto mais fugir desse vício da falta de empatia e autenticidade.

O Príncípio da Cooperação é, então, um pilar de uma anamnese bem feito. Do Princípio da Cooperação, o Grice derivou uma série de máximas. As máximas de Grice podem facilmente ser adaptadas para o contexto da entrevista clinica em neuropsicologia:

1.  Qualidade: Ser respeitoso e demonstrar tato, mas ser sincero e acreditar na sinceridade do cliente;
2.  Modo: Ser organizado, ético e empático e otimista;
3.  Relevância: Focar no que interessa;
4.  Quantidade: Não sobrecarregar o cliente com informações ou preocupações desnecessárias.

Talvez essas regrinhas sejam óbvias demais, ou mais facilmente formuáveis do que obedecidas. Mas se elas não fossem explicitadas, quais seriam as diretrizes?


Referências

Bálint, E. & Norell, J. S. (1986). Seis minutos para o paciente. Rio de Janeiro: Manole.

Barrier, P. A., Li, J. T. C.  & Jensen, N. M. (2003). Two words to improve physician-patient communication: what else? Mayo Clinic Proceedings, 78, 211-214.

Grice, H. P. (1975). Logic and conversation. Syntax and Semantics, 3, 41-58.

Ridley, M. (1998). The origin of virtue: human instincts and the evolution cooperation. New York: Penguin.

Trivers, R. (2011). The folly of fools. The logic of deceit and self-deception in human life. New York: Basic Books.

Wright, R. (1994). The moral animal. Why are the way we are. The new science of evolutionary psychology. New York: Pantheon.

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