Sunday, December 27, 2015

Trinta anos de redes neurais e neuroimagem funcional: o que sobrou da neuropsicologia

Haase, V. G. (2014). Trinta anos de redes neurais e neuroimagem funcional: o que sobrou da neuropsicologia. Boletim daSBNp, Setembro, pp. 12-15.

A década de 1980 testemunhou dois avanços importantes na neurociência cognitiva. Em 1986 foi publicado o livro de referência das redes neurais conexionistas ou processamento distribuído e paralelo (McClelland et al., 1986, Rumelhart et al., 1986). Dois anos depois foi publicado o estudo clássico de Petersen e cols. (1988),  usando tomografia por emissão de pósitrons para identificar as áreas cerebrais ativadas pelo processamento lexical. As redes neurais demonstraram que era possível simular desempenhos cognitivos relativamente complexos utilizando modelos com algumas dezenas ou centenas de unidades muito simples, organizadas de forma maciçamente paralela, sem uma arquitetura previa sofisticada, sem programação explícita e servindo-se apenas de uma regra de correção de erro nas respostas do sistema. Os comportamentos complexos simplesmente emergem da dinâmica de um sistema de input-output com uma camada intermediária, desde que seja utilizada uma regra de aprendizagem ou correção de erro, a qual diminui a discrepância entre os padrões de ativação exibidos pela rede e os padrões almejados de output.





Aparentemente, os modelos de rede neural questionaram a pressuposição tradicional em neuropsicologia de localizacionismo funcional, uma vez que desempenhos cognitivos complexos podem emergir em sistemas organizados de forma não-modular. Mais ainda, lesões em sistemas não-modulares podem, inclusive, resultar em efeitos de dissociação dupla entre funções preservadas e comprometidas (Kello, 2003), os quais são tradicionalmente interpretados como evidência para uma organização modular do cérebro-mente. A neuroimagem funcional reforçou esta hipótese ao mostrar que tarefas cognitivas relativamente simples e especificas podem recrutar uma rede distribuída de estruturas cerebrais para sua implementação.

As  investigações com redes neurais e neuroimagem funcional parecem sugerir, portanto, que a atividade neural subjacente mesmo às tarefas cognitivas mais simples e específicas recruta uma rede neuronal geograficamente dispersa no cérebro. Isto contribuiu para abalar a confiança dos neuropsicólogos nos postulados do localizacionismo. Ao longo das décadas seguintes foi progressivamente diminuindo a quantidade de estudos com pacientes e aumentando a proporção de estudos com neuroimagem funcional nos principais periódicos de neuropsicologia, tais como Neuropsychologia ou Cortex. A história da neuropsicologia se caracteriza por uma disputa recorrente entre defensores e detratores do “localizacionismo” (Haase et al., 2012, Lecours et al., 1992). O localizacionismo parece estar mesmo em baixa nos tempos atuais.

Alguns episódios vivenciados por mim podem ser tomados como evidência do baixo astral localizatório que assombra a neuropsicologia atual:

1.     Uma aluna foi apresentar um pôster em um congresso e ficou muito frustrada porque a avaliadora lhe disse que sua interpretação dos resultados era muito localizacionista e que o localizacionismo teria “caído”. Ela não soube o que responder;
2.     O revisor de um artigo que eu enviei para publicação também questionou algumas das minhas interpretações dos resultados por serem, supostamente, muito localizacionistas. Eu soube o que responder e o paper foi publicado;
3.     Em uma discussão de um grupo de trabalho eu defini a característica distintiva da neuropsicologia como sendo o estudo das correlações estrutura-função em pacientes com algum tipo de lesão ou disfunção cerebral. Um dos colegas participantes da discussão teve muita dificuldade em aceitar essa afirmação. Não ficou claro, entretanto, como ele propunha caracterizar alternativamente e neuropsicologia. Ou seja, o que ele colocaria no lugar da boa e velha correlação anátomo-clinica. Eu continuo convencido de que a correlação anátomo-clinica não morreu e permanece sendo a característica distintiva da neuropsicologia. Antes eu andava nos corredores da FAFICH e me xingavam de positivista. Agora me xingam de localizacionista. Consola-me pensar que estou em boa companhia.

Historicamente o pêndulo tem oscilado entre o localizacionismo e o anti-localizacionismo. As redes neurais e os métodos de neuroimagem parecem colocar a neuropsicologia clássica em questão. Mas será que é assim mesmo? Acredito que trinta anos depois temos condições de traçar um quadro mais equilibrado da situação, incorporando as evidências de redes neurais e neuroimagem funcional ao corpo de doutrina da neuropsicologia (Shallice & Cooper, 2011). Esta perspectiva mais equilibrada do localizacionismo deve considerar, entre outras, as seguintes evidências teóricas e empíricas:

1.     O localizacionismo estrito é um mito. Talvez nem mesmo Broca fosse um localizacionista tão ingênuo assim como se lhe costuma atribuir. O localizacionismo burro parece existir apenas como um espantalho criado na cabeça dos seus adversários. Carl Wernicke, p. ex., já tinha uma concepção conexionista e distribuída da localização cerebral (Gage & Hickok, 2005), muito semelhante à que é defendida contemporaneamente (Haase et al., 2008, 2010, Mesulam, 1998).

2.     As duplas dissociações em redes não estruturadas modularmente ocorrem apenas quando o sistema consiste de um número pequeno de unidades. Em redes não-modulares maciçamente maiores predominam os efeitos de massa após lesões de magnitude crescente (Bullinaria & Chater, 1995). Conseqüentemente, não se pode esperar efeitos de dissociação dupla após lesões de um sistema tão complexo como cérebro  humano se o mesmo não for organizado modular e hierarquicamente.

3.     Estudos de neuroimagem funcional usando a técnica de conectividade funcional mostram que o padrão de conexão para as principais redes funcionais descobertas pelos neuropsicólogos é tão forte que pode ser identificado mesmo em repouso (Meunier et al., 2010).

4.     As pesquisas sobre conectividade funcional mostram também que as principais redes funcionais desvendadas pelos neuropsícólogos já estão ativas desde o nascimento (Power et al., 2010). Ou seja, o cérebro humano não é uma tábula rasa ao nascimento, mas sim, uma estrutura complexa, modularmente hierarquizada, mas que também suporta processamento paralelo e se adapta de forma plástica e dinâmica em função da experiência.

5.     Além de validar a localização lesional das principais síndromes neuropsicológicas (Catani et al., 2012), as pesquisas com tractografia têm demonstrado amplamente a validade do conceito de síndrome de desconexão proposto pelos neuropsicólogos clássicos (Catani & ffythce, 2005, Geschwind, 1965a,b).

6.     Os métodos de neuroimagem funcional atualmente disponíveis são muito imprecisos quanto à sua resolução espacial e temporal. Métodos neurofisiológicos com uma maior resolução temporal demonstram, p. ex., que padrões de ativação que parecem distribuídos em uma janela temporal de alguns segundos correspondem, na verdade, à uma ativação sequencial com uma dinâmica de dezenas a centenas de milissegundos (Sahin et al., 2009).

7.     Os padrões de ativação distribuída em estudos de neuroimagem funcional indicam as áreas cerebrais potencialmente envolvidas em uma tarefa, mas não podem identificar as áreas que são cruciais para um determinado desempenho cognitivo (Price, 2000). Desta forma, a neuroimagem pode ser mais útil no contexto da descoberta, ou seja, na identificação de possíveis correlações estrutura-função. Os estudos com pacientes e a estimulação magnética transcraniana, por outro lado, são imprescindíveis no contexto de verificação, para identificar as áreas cuja integridade funcional é absolutamente necessária para um dado exercício funcional.

Até cerca de 30 anos atrás a neuropsicologia era o único método não-invasivo para inferir relações sistemáticas entre a integridade anatômica de determinados circuitos funcionais e a implementação de diversos processos psicológicos (Shallice, 1988). Este panorama mudou radicalmente. Em função do desenvolvimento tecnológico dispomos atualmente de recursos que permitem investigar as correlações estrutura-função in vivo. Entretanto, ao invés de desbancarem a neuropsicologia, as novas tecnologias contribuem mais para validá-la, complementá-la e expandí-la.

À medida que o conhecimento se acumula fica mais claro que as novas tecnologias também se ressentem de importantes limitações. As redes neurais são mais úteis na formulação precisa e matematização de hipóteses do que na sua verificação. Além de importantes restrições estatísticas decorrentes das análises superpostas e probabilidade de erro de tipo II, bem como  quanto à sua resolução espaço-temporal, a neuroimagem funcional também é mais útil na formulação de hipóteses do que na sua verificação. Acrescida da estimulação magnética transcraniana, a neuropsicologia permanece sendo o único método disponível para estabelecer relações necessárias entre a  integridade anatômica de uma dada estrutura neural e um determinado processo psicológico.

A melhor compreensão das vantagens e limitações de cada método permite aos pesquisadores utilizar-se de uma estratégia de validação convergente para testar seus modelos (Shallice & Cooper, 2011). Os modelos mais válidos são aqueles sustentados por um conjunto maior de evidências convergentes a partir de diferentes abordagens. O localizacionismo não morreu. Seu sobrenome é distribuído. Mas você viu algum autor na história recente da neuropsicologia defender um localizacionismo estrito, burro? Do tipo tal função é implementada por tal centro? Desde Freud (1891) ninguém mais pensa assim em neuropsicologia. Só os adversários e os quinta-coluna, que querem corroer a neuropsicologia por dentro. A neuropsicologia não é mais o único nem o principal método inferencial para estabelecer correlações estrutura-função. Nasceram uma série de irmãs mais jovens. Mas a neuropsicologia continua aí e até hoje não pode ser descartada. Nâo é mais uma princesinha, mas também não é uma borralheira.


Referências

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